segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Amarcord




E só agora, na ressonância descompassada e cacofônica de sua respiração em meu ouvido é que pude entender um pedaço de minha memória, um pedaço perdido como uma torta infestada por fungos, dormindo silenciosa no fundo da geladeira. Uma fatia de mim que foi sepultada e sufocada entre imagens que antes pareciam muito mais vivas. 
Só agora, sentindo suas coxas geladas e suas mãos me envolvendo num abraço inconsciente de carência sufocante, eu pude lembrar, com clareza límpida a estranha carga imagética dos meus um tanto longilíneos dezesseis anos. Quando todas as manhãs eu era despertado pela cadela branca da família, que aprendera a abrir a porta e se aninhava em meus pés a beira da cama; num quarto excessivamente retangular, mal iluminado, fedendo a ressaca e a livros velhos de biblioteca.
 Uma afta explode em minha boca, misturando o pus aos tormentos de minha gengivite matinal, quase posso sentir a aspereza de sua pequena língua rosa lambendo meus tornozelos; quase posso ouvir os insultos abrasadores de meu pai, rompendo com força o véu dos sonhos que me acolhiam naqueles fantasiosos dias. 


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