E só agora, na ressonância
descompassada e cacofônica de sua respiração em meu ouvido é que pude entender
um pedaço de minha memória, um pedaço perdido como uma torta infestada por
fungos, dormindo silenciosa no fundo da geladeira. Uma fatia de mim que foi
sepultada e sufocada entre imagens que antes pareciam muito mais vivas.
Só agora, sentindo suas coxas
geladas e suas mãos me envolvendo num abraço inconsciente de carência
sufocante, eu pude lembrar, com clareza límpida a estranha carga imagética dos
meus um tanto longilíneos dezesseis anos. Quando todas as manhãs eu era
despertado pela cadela branca da família, que aprendera a abrir a porta e se
aninhava em meus pés a beira da cama; num quarto excessivamente retangular, mal
iluminado, fedendo a ressaca e a livros velhos de biblioteca.
Uma afta explode em minha boca, misturando o
pus aos tormentos de minha gengivite matinal, quase posso sentir a aspereza de
sua pequena língua rosa lambendo meus tornozelos; quase posso ouvir os insultos
abrasadores de meu pai, rompendo com força o véu dos sonhos que me acolhiam
naqueles fantasiosos dias.
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